Literatura contemporánea de Portugal / No. 212
Peixe-lua
Quando o sol se pôs eu estava a assar o peixe-lua.
Tinha acordado de manhã a pensar no destino que havia de dar-lhe, e no cru instante em que a primeira luz entrou pela janela tomei a decisão. Ia livrar-me dele pelo fogo. Ia assá-lo. Ao levantar-me, encontrei-o pousado na mesa da cozinha, tal como ali havia sido deixado na noite anterior. Estava cortado a meio de alto a baixo, com a linha de precisão e simetria que apenas a perfeita indiferença da faca poderia ter alcançado. Era um peixe-lua jovem; teria alastrado como um fantasma pelo fundo do oceano, se o tivessem deixado crescer. Ainda assim, o seu corpo aberto em dois ocupava toda a extensão da mesa da cozinha, deixando de fora, suspensas do tampo de madeira, a cauda e a carantonha duplicadas, o sangue pingando nas lajes do chão.
O céu da manhã estava baço e mortiço, estagnado. Preparei o fogareiro no quintal e dei xei que a leve brisa que corria entre as árvores acicatasse as brasas. Eu sabia que um peixe-lua não é comestível. Ninguém, que não a faca, sentira alguma vez desejo de prová-lo. Enquanto as brasas se acendiam, pus-me a olhá-lo pela janela da cozinha. Ali estava ele: murcho e aberto, metade do corpo com as entranhas para cima como uma cabeça de medusa, a outra metade recatada, apenas a carcaça visível, recamada ainda das cintilações azuis e loiras que lhe pusera o mar.
A lua cheia desta noite será a maior do ano, rezavam as notícias de há dois dias atrás. E o peixe-lua, após anos de mergulhos profundos, tinha vindo à superfície do oceano. Tinhase deitado de lado a flutuar para aquecer-se na maré tocada pelo luar. Assim deitado, o peixe-lua sonhava com a faca, a lâmina correndo até ele ao longo de toda a margem do rio. A faca roçava-se nas pedras como se sentisse saudades de outra coisa indizível. Como se o mar ao longe a mordesse, a faca andou toda a noite até dar com o peixe-lua que se banhava à luz da lua. O animal, raiz ou sombra, recebeu-a com a alegria inexplicável de quem acolhe o golpe e deixou-se abrir a meio, de tal forma que, quando o encontrei de manhã, se diria haver amor na lâmina.
Ao vê-lo, o meu corpo tingiu-se da tristeza daquele corpo opaco e indolor, insolente na serena inocência com que se deixara matar e mutilar, e com que agora dormia, violado, exposto, na penumbra da cozinha, confiante de que a lua cheia continuava a banhá-lo. Reconhecia, sem saber de onde, o gesto impessoal de amor que quebrasse e contornasse os meus ossos, que cindisse em silêncio a minha carne sôfrega.
Entrei na cozinha e com as mãos nuas arranquei pedaços da carne do peixe-lua. Afundei os dedos na polpa mole e repisada das suas entranhas. Era diferente de tocar algum homem ou animal terreno. Era carne intangível, oca, desassombrada como um balão que se desprende das mãos de uma criança. A carne abundava, era suficiente para um imenso banquete, e eu estava sozinha, vivia sozinha na casa e não havia ninguém que eu pudesse chamar para comer comigo. Mas, no momento em que as brasas tocaram as pontas da car-ne no fogareiro, os cães dos quintais vizinhos começaram a uivar.
Assim, todo o dia retalhei o peixe-lua e arrumei a carne nas brasas com a paciência de um estivador. Parti os ossos e lancei-os como aperitivo aos cães. Depois, lancei-lhes também a carne ainda em brasa, e os olhos, grandes e inertes, parados como se nunca se tivessem fechado, como se nunca tivessem estado tão vivos que pudessem agora estar mortos, arranquei-lhos da cara com a ponta da faca e lancei-os também aos cães.
Quando o sol se pôs eu estava ainda a assar o peixe-lua. Mas os cães calavam-se, e pesavame a solidão. Tinha nos membros o torpor da faca como um presente, uma ameaça. Tinha o corpo tomado desse rigor que abrira o peixe-lua, de tal forma que, mesmo sem já quase sobrar vestígio dele, se podia voltar a uni-lo na imaginação sem que o golpe fosse notado.
Inédito
Pez-luna
Cuando se puso el sol yo estaba asando al pez-luna.
Había despertado en la mañana pensando en el destino que le daría, y en el crudo instante en que la primera luz entró por la ventana tomé la decisión. Me libraría de él con fuego. Lo asaría. Al levantarme, lo encontré sobre la mesa de la cocina, tal como lo habían dejado la noche anterior. Estaba cortado por la mitad de arriba abajo, con la línea de precisión y simetría que sólo la perfecta indiferencia del cuchillo podría haber alcanzado. Era un pez-luna joven; se habría extendido como un fantasma por el fondo del océano, si lo hubieran dejado crecer. Aun así, su cuerpo abierto en dos ocupaba toda la extensión de la mesa de la cocina, dejando fuera, suspendidas del tablón de madera, la cola y la cara grande y fea duplicadas, la sangre salpicando en las baldosas del suelo.
El cielo de la mañana estaba pálido y mortecino, estancado. Preparé la estufita a gas en el jardín y dejé que la suave brisa que corría entre los árboles avivara las brasas. Yo sabía que el pez-luna no era comestible. Nadie, a no ser el cuchillo, había sentido alguna vez ganas de probarlo. Mientras las brasas se encendían, me puse a verlo desde la ventana de la cocina. Ahí estaba: marchito y abierto, la mitad del cuerpo con las entrañas saliendo como una cabeza de medusa, la otra mitad recatada, sólo el cadáver visible, bordado aún con los destellos azules y rubios del mar.
La luna llena de esta noche será la más grande del año, decían las noticias de hace dos días. Y el pez-luna, después de años de profundas zambullidas, había llegado a la superficie del océano. Se había echado de lado flotando para calentarse en la marea tocada por el claro de luna. En esta posición, el pez-luna soñaba con el cuchillo, la lámina corriendo hasta él a lo largo de toda la margen del río. El cuchillo rozaba las piedras como si tuviera nostalgia de otra cosa indecible. Como si el mar a lo lejos lo mordiera, el cuchillo caminó toda la noche hasta dar con el pez-luna que se bañaba a la luz de la luna. El animal, raíz o sombra, lo recibió con la alegría inexplicable de quien recibe el golpe y se dejó abrir por la mitad, de tal forma que, cuando lo encontré en la mañana, podría decirse que había amor en la lámina.
Al verlo, mi cuerpo se tiñó de la tristeza de aquel cuerpo opaco e indoloro, insolente en la serena inocencia con la que se había dejado matar y mutilar, y con la que ahora dormía, violado, expuesto, en la penumbra de la cocina, confiando en que la luna llena continuaba bañándolo.
Reconocía, sin saber de dónde, el gesto impersonal de amor que quebrara y rodeara mis huesos, que escindiera en silencio mi carne ávida.
Entré a la cocina y con las manos desnudas arranqué pedazos de la carne del pez-luna. Hundí los dedos en la pulpa suave y machacada de sus entrañas. Era distinto a tocar a algún hombre o animal terrestre. Era carne intangible, hueca, audaz como un globo que se desprende de las manos de un niño. La carne abundaba, era suficiente para un inmenso banquete, y yo estaba sola, vivía so la en la casa y no había nadie a quien pudiera llamar para comer conmigo. Pero en el momento en que las brasas tocaron las puntas de la carne en la estufa, los perros de los patios vecinos comenzaron a aullar. Así, todo el día destacé al pezluna y fui poniendo la carne en las brasas con la paciencia de un estibador. Partí los huesos y se los lancé como aperitivo a los perros. Después, les lancé también la carne aún en brasas, y los ojos, grandes e inertes, detenidos como si nunca se hubieran cerrado, como si nunca hubieran estado tan vivos que pudieran ahora estar muertos, se los arranqué de la cara con la punta del cuchillo y se los lancé también a los perros.
Cuando se puso el sol yo todavía estaba asando al pez-luna. Pero los perros estaban callados, y me pesaba la soledad. Tenía en los miembros el letargo del cuchillo como un regalo, una amenaza. Tenía el cuerpo tomado por ese rigor que había abierto al pez-luna, de tal forma que, incluso sin que sobraran ya casi vestigios suyos, se podía volver a unirlo en la imaginación, sin que el golpe se notara.
(Une jeune fille à Bruxelles à la fin des années 60)
Tornou-se fácil reconhecê-las. Vestiam camisolas listadas, andavam na alameda ao entardecer, bebiam o morno aroma das tílias. Dançavam mal, expulsas de qualquer ciranda. Tinham certa tendência para encenar-se, para se recortarem em vertigem contra a noite. E uma certa opulência da carne, um rosto que, entre os irmãos, se notava muito.
Faziam-se beijar quase sem desespero, imitando o que viam nos filmes. Namorava-as uma câmara oculta, e talvez fosse deus, talvez a imaginação, essa lente diante da qual se sentiam viver. Pensavam que a verdade do beijo decorria do simples facto de estarem ali, no escuro do cinema, fazendo-se beijar; que, se perguntassem ao rapaz, ele não hesitaria em confirmar: Pois sim, estamos a beijar-nos. O beijo era autêntico porque podia ser nomeado. Dependia de um protocolo, de uma demasiado firme adesão à linguagem, e não do desejo de beijar.
Mas elas — era fácil reconhecê-las pela respiração forte, pela banda sonora cruel e premeditada — também sabiam que os beijos eram como fantasmas. Elas beijavam como fantasmas beijariam, se beijassem.
Ao namorar rapazes no cinema eu era um fantasma, se entendermos o fantasma como um desfasamento entre dois mundos, uma imagem débil, incapaz de fixar-se a não ser através da superstição. Havia um desfasamento entre mim e as raparigas que eu via nos filmes, e que reconhecia, e entre mim e os rapazes que eu beijava. Isto às vezes atinge-me, como um pesponto áspero na dobra interior de um tecido.
Inédito
(Une jeune fille à Bruxelles à la fin des années 60)
Se volvió fácil reconocerlas. Vestían camisetas a rayas, caminaban en la alameda al atardecer, bebían el tibio aroma de la tila. Bailaban mal, eran expulsadas de cualquier ronda. Tenían cierta tendencia a autorrepresentarse, a recortarse en vértigo contra la noche. Y una cierta opulencia de la carne, un rostro que, entre los hermanos, se notaba mucho.
Se dejaban besar sin desesperación, imitando lo que veían en las películas. Las cortejaba una cámara oculta, y tal vez era dios, tal vez su imaginación, ese lente frente al cual se sentían vivas. Pensaban que la verdad del beso resultaba del simple hecho de estar ahí, en la oscuridad del cine, dejándose besar; que, si le preguntaran al muchacho, él no dudaría en confirmar: Así es, nos estamos besando. El beso era auténtico porque podía ser nombrado. Dependía de un protocolo, de una demasiado firme adhesión al lenguaje, y no del deseo de besar.
Pero ellas —era fácil reconocerlas por su respiración fuerte, por la banda sonora cruel y premeditada— también sabían que los besos eran como fantasmas. Ellas besaban como los fantasmas besarían, si besaran.
Al coquetear con los muchachos en el cine yo era un fantasma, si entendemos al fantasma como un desfase entre dos mundos, una imagen débil, incapaz de fijarse de no ser a través de la superstición. Había un desfase entre las muchachas que veía en las películas y yo, y que reconocía, y entre los muchachos que besaba y yo. Esto a veces me toca, como un pespunte áspero en el pliegue interior de una tela.
Soube da indolência com que tudo acabaria no momento em que ela me mostrou o antebraço nu, a tenra pele onde viviam cicatrizes. eu chegava à ciência de medir no pulso a temperatura do que lhe dava a beber. aproximava-me da febre. na penum bra aproximei o meu próprio pulso onde secaram marcas finas, um esboço simétrico e sem imaginação numa tarde débil de mais para magoar-me a sério. o inverno in to leravelmente longo, a audácia de puxarmos camisolas, a nudez possível no exíguo espaço dos pulsos sobre a mesa de café.
Soube da indolência com que tudo acabaria e sempre, desde en-tão, estive atenta aos seus sinais, para mim mais potentes que cinema ou natureza.
De Tão bela como qualquer rapaz, Língua Morta, 2017
Supe de la indolencia con la que todo acabaría en el momento en que ella me mostró el antebrazo desnudo, la tierna piel donde vivían las cicatrices. yo llegaba al punto de medir en mi mano la temperatura de lo que le daba a beber. me acercaba a la fiebre. en la penumbra acerqué mi propia muñeca donde se habían secado las marcas finas, un esbozo simétrico y sin imaginación en una tarde demasiado débil como para lastimarme en serio. el invierno intolerablemente largo, la audacia de quitar camisetas, la desnudez posible en el exiguo espacio de las manos sobre la mesa de café. Supe de la indolencia con la que todo acabaría y siempre, desde entonces, estuve atenta a sus señales, que para mí eran más potentes que el cine o la naturaleza.
O poema é a mão,
o gesto mais espesso.
Uma pétala apartada da carne.
A concisão perdida de uma flor
no fim do verão.
A mão é o que há de cabisbaixo no poema,
um toldo sobre a tarde ingente.
Propaga o estilo
o carácter
as falhas e metamorfoses.
A mão é o poema.
Um pássaro arrepiado no silêncio da manhã.
De Tão bela como qualquer rapaz, Língua Morta, 2017
El poema es la mano,
el gesto más espeso.
Un pétalo apartado de la carne.
La concisión perdida de una flor
al final del verano.
La mano es lo que hay de cabizbajo en el poema,
un toldo sobre la tarde ingente.
Propaga el estilo
el carácter
las fallas y metamorfosis.
La mano es el poema.
Un pájaro
erizado en el silencio de la mañana.
Andreia C. Faria (Oporto, 1984). Ha publicado De haver relento (Cosmorama Edições, 2008), Flúor (Textura Edições, 2013) y Um pouco acima do lugar onde melhor se escuta o coração (Edições Artefacto, 2015). Su último libro, Tão bela como qualquer rapaz (Língua Morta, 2017), recibió el Premio SPA2017 en la categoría Mejor Libro de Poesía.