Literatura contemporánea de Portugal / No. 212



1.

Quem disse as melhores coisas sobre mim foram os meus inimigos
VICENTE HUIDOBRO


Que seja verdade tudo o que dizem… em algum momento e a ponto de tremer de vergonha, ao mesmo tempo fascinado, mirando essas ficções — um reflexo apurando o gosto ao lume do ódio. Já não podemos transformar-nos em animais como dantes, mas em bestas sem nome talvez, anunciados por uma trepidação que chegue de outras terras, e o que mais se dizia dos lugares inexplorados, antes de qualquer decalque dos cartógrafos, ambientes em que os marinheiros sentiam as entranhas gemer supondo que aí pudessem ver-se dragões. Eis toda a magia que nos resta: como os inimigos se rezam uns aos outros — dores misturadas, rogando-se um acto de absoluta vileza, a roçar o indescritível, nesse li-mite contra o qual nos abatemos. Depois da conquista dos pólos, faz mais de um século, pelos mais geniais e desonestos suicidas, hoje, com a extinção em curso do que nos aterrorizou no escuro durante milénios, só no terreno da inimizade resta margem para riscar a superfície das lendas. Entre estas gerações definhando antes que tenha início o assalto ao cosmos, olhamos os céus nocturnos e essa vertigem como quem escava em vão a terra, resignados com os cacos de antigas civilizações, um astro fóssil que ao invés de iluminar nos cega… Mas o que temos para expedição onde ensaiar um estilo? O zumbido dos canos atrás da pa rede desta época só nos sufoca, temos ratos neste pardieiro, superfícies mofadas, barulhos inexplicáveis; o tempo passa por uma assombração, a decadência consome-nos, em vez de uma candeia deve andar-se pelos corredores de faca na mão, a chamar como a um gato, aqui bicho, anda que te fodo; tresvariados da cabeça, a milénios de distância das presas mais notáveis, essas de tão fabuloso porte que as sonhamos em fascículos, ao longo de uma série de noites. Vamos cercá-las nalgum museu, a voz abafada do guia a trautear qualquer coisa sobre a préhistória, a apreciar a perícia do taxidermista que falsificou esse assombro, tacteando no escuro das suas suposições, cosendo as partes de animais da mesma família, dá-nos essa montagem de uma coisa que ainda há pouco estava viva. Fora isso, é a mesma humilhação diária dos nossos instintos em toda a parte pela afamada era da técnica. Temos ainda no vocabulário as marcas de uma terrível refrega, os traumas mais fundos na gramática, um resíduo mágico que pelas palavras nos liga ao prazer de se estar algumas posições abaixo na cadeia alimentar, e, se os versos parecem armas toscas, mantêm a fiabilidade do que poderemos sempre retomar: uma perícia essencial que separava quem viveria, quem fala por frases verdadeiras, ainda que caminhe alucinado, com o ar demencial que toma um arcanjo quando se avizinha de um bairro terrestre. A arrancar a pele do que se diz para que o sentido dê alguns passos por nós, os mais difíceis. Temos noites para essas coisas: estrangular os débeis que só fazem número e atrasam toda a geração, mantendo debaixo de olho as nossas imperfeições, com a ajuda desses formidáveis inimigos que se querem por perto. Tiro o rosto do caminho, procuro dividir-me em sete dias como ensinam os mais velhos, vigiando os avanços da catástrofe enquanto cronista meliante destes estados gerais da javardeira, e, nisto, tiro o pulso a todos esses sonhos de merda, com gente a mais, ponho um espelho frente à fraca respiração da musa, doente, arrastada, exposta como uma triste aberração de feira. Os pássaros cantando pior do que em qualquer outro período da história, ela a tossir e eles a caírem-lhe mortos à cabeceira.




1.

Las mejores cosas sobre mí las han dicho mis enemigos.
VICENTE HUIDOBRO


Que sea verdad todo lo que dicen… en algún momento y a punto de temblar de vergüenza, al mismo tiempo fascinado, mirando esas ficciones —un reflejo apura el sabor al calor del odio. Ya no podemos transformarnos en animales como antes, sino en bestias sin nombre tal vez, anunciados por una trepidación que llegue de otras tierras, y lo que más se decía de los lugares no explorados, antes que cualquier calco de los cartógrafos, ambientes en que los marineros sentían gemir sus entrañas suponiendo que ahí podrían verse dragones. Ésa es toda la magia que nos queda: como los enemigos se rezan unos a otros —dolores mezclados, rogando por un acto de absoluta vileza, rozando lo indescriptible, en ese límite contra el cual nos abatimos. Después de la conquista de los polos, hace más de un siglo, por los más geniales y deshonestos suicidas, hoy, con la extinción en curso de lo que nos aterrorizó en la oscuridad durante milenios, sólo en el terreno de la enemistad queda margen para tachar la superficie de las leyendas. Entre estas generaciones consumiéndose antes de que inicie el asalto al cosmos, miramos los cielos nocturnos y ese vértigo como de quien escarba en vano la tierra, resignados con los fragmentos de antiguas civilizaciones, un astro fósil que en vez de iluminar nos ciega… ¿Y lo que tenemos para la expedición basta para ensayar un estilo? El sonido de la tubería atrás de la pared de esta época sólo nos sofoca, tenemos ratones en esta pocilga, superficies enmohecidas, ruidos inexplicables; el tiempo es como una aparición, la decadencia nos consume, en vez de una vela se debe caminar por los corredores con un cuchillo en la mano, llamando como se llama a un gato, aquí, ven o te chingo; delirando en su cabeza, a milenios de distancia de las presas más notables, esas de tan fabuloso tamaño que las soñamos en fascículos durante una serie de noches. Vamos a rodearlas en algún museo, la voz ahogada del guía tarareando algo sobre la prehistoria, apreciando la pericia del taxidermista que falsificó ese portento, a tientas en la oscuridad de sus suposiciones, cosiendo las partes de animales de la misma familia, nos da ese ensamblaje de algo que hace poco estaba vivo. Aparte de eso, es la misma humillación diaria de nuestros instintos en todas partes por la famosa era de la técnica. Tenemos aún en el vocabulario las marcas de una terrible refriega, los traumas más hondos en la gramática, un residuo mágico que por medio de las palabras nos vincula al placer de estar algunas posiciones abajo en la cadena alimenticia, y, si los versos parecen armas burdas, mantienen la fiabilidad de lo que podremos siempre retomar: una pericia esencial que determinaba quién viviría, quién habla con frases verdaderas, aunque camine alucinado, con el aire demencial que adquiere un arcángel cuando se acerca a un barrio terrestre. Arrancando la piel de lo que se dice para que el sentido dé algunos pasos por nosotros, los más difíciles. Tenemos noches para esas cosas: estrangular a los débiles que sólo están ahí para aumentar el número y atrasan a toda la generación, manteniendo bajo sus ojos nuestras imperfecciones, con la ayuda de esos formidables enemigos que se quieren cerca. Quito el rostro del camino, intento separarme en siete días como nos enseñaron los más viejos, vigilando los avances de la catástrofe como cronista maleante de estos estados generales de la suciedad, y, en esto, les tomo el pulso a todos esos sueños de mierda, con gente de más, pongo un espejo frente a la débil respiración de la musa, enferma, arrastrada, expuesta como un triste fenómeno de feria. Los pájaros can-tan peor que en cualquier otro periodo de la historia, ella to sien do y ellos cayendo muertos en su cabecera.




2.

Um tiro que vem lá de um canto da cabeça
como um animal atravessando
o perfume da presa, trazendo-lhe a morte
doce, inteira e negra,
anunciada desde os primeiros passos.
O difícil é negar-se a uma coisa dessas.

Nos recantos esbatidos da história
saboreamos venenos,
atraiçoando o sangue até que os nomes
nos firam de rompante. Até lá vão abrindo
pequenos cortes, arrastados.
Mas depois há a luz para que se corre
como se faltasse o ar. O terror, afinal,
é um modo de dar-se. Lâmpada balouçando
para que nos veja de tantos mais lados
o escuro.

Ao chão eu fui tarde demais e
soube-me como uma brisa, mas hoje
cuspo um sangue velho
do murro que me vem, fende-me o lábio
mete-ma dentro, esta cara que já mal
reconheço. Um gosto amargo, admirável
refaz-me a boca cada noite,
e negro floresce arterial
como vibram as lesões cantando vida fora.
Cada dor que me esquece, refaço-a.
Espremo os pobres materiais à minha volta,
e a idade passa-me a limpo o susto.

Uma água na cabeça, subindo calmamente
como o caçador ao apanhar-lhe o rastro.
Oiço como a distância só alimenta o grito,
e estende os seus passos sufocando o próprio eco,
num ritmo dissoluto: vem, vadio, soprando
a demência ao ouvido de cada coisa.

Quando a língua deixa de ser de carne
há um vento que só as sombras move,
o resto deixa petrificado.
De flores já mortas desata o perfume
e eu venho respirá-lo por que lado?
A que cabeça me chegam as imagens,
a frase tremida que o espelha?

Silêncio infuso da comichão dos astros,
desde essa torre obscura e desordenada
tomo o pulso das estrelas carentes,
as extintas apurando os seus lances finais,
decomposições lentas escoando milénios.
Como canções vagarosas, como
frutos rachados de odor inquietante,
como tudo o que o sol disputa
aos bichos. Terrenamente,
com estes poucos sentidos, espreito
os modos em que tudo se desfaz,
o olhar cheio dessa gente que faz lembrar
nos caminhos os afogados.
Do que parto com estas mãos, do mal
que lhes reconheço, deste frágil
talento para os desastres,
nem me arrependo, pois mato para abrir
e admirar. Talvez seja um pouco tarde.
Para eles. Não para mim.
E o que os pássaros me roubam, por aí
vou sabendo quanto do erro tocou o fundo.
Comem a beleza, eles, eu recolho
ossos vivos. Tacho e lume, a sopa
que sirvo aos meus fantasmas.




2.

Un tiro que viene de un rincón de la cabeza
como un animal atravesando
el perfume de la presa, trayéndole la muerte
dulce, entera y negra,
anunciada desde los primeros pasos.
Lo difícil es negarse a una cosa de ésas.

En los rincones difuminados de la historia
saboreamos venenos,
traicionando la sangre hasta que los nombres
nos hieran de repente. Hasta allá van abriendo
pequeños cortes, arrastrados.
Y después está la luz a la que se corre
como si faltara el aire. El terror, al final,
es un modo de darse. Lámpara oscilando
para que nos vea de otros tantos lados
la oscuridad.

Al suelo fui ya muy tarde y
me supo como una brisa, pero hoy
escupo sangre vieja
del golpe que llega, me parte el labio
la hunde hasta adentro, esta cara que ya no
reconozco. Un sabor amargo, admirable
rehace mi boca cada noche,
y negro florece arterial
como vibran las lesiones cantando por la vida.
Cada dolor que me olvida, lo renuevo.
Exprimo los pobres materiales a mi alrededor,
y la edad me pasa en limpio el susto.

Agua en la cabeza, subiendo lentamente
como el cazador al seguirle el rastro.
Oigo cómo la distancia alimenta el grito,
y extiende sus pasos sofocando al propio eco,
con ritmo disoluto: viene, vaguea, soplando
la demencia al oído de cada cosa.

Cuando la lengua deja de ser carne
hay un viento que sólo las sombras mueve,
lo demás queda petrificado.
De flores ya muertas desata el perfume
¿y vengo a respirarlo por qué lado?
¿A qué cabeza me llegan las imágenes,
la frase temblorosa que refleja?

Silencio infundido por la comezón de los astros
desde esa torre oscura y desordenada
les tomo el pulso a estrellas necesitadas,
las extintas en sus últimos movimientos,
descomposiciones lentas escurriendo milenios.
Como canciones lentas, como
frutos agrietados de olor inquietante,
como todo lo que el sol disputa
a los animales. Terrenamente,
con estos pocos sentidos, espío
los modos en que todo se deshace,
la mirada llena de esa gente que recuerda
los caminos de los ahogados.
De qué parto con estas manos, del mal
que les reconozco, de este frágil
talento para desastres,
no me arrepiento, pues mato para abrir
y admirar. Tal vez sea un poco tarde.
Para ellos. No para mí.
Y lo que los pájaros me roban, así
me entero cuánto del error tocó fondo.
Se comen la belleza, ellos, yo recojo
huesos vivos. Olla y lumbre, la sopa
que sirvo a mis fantasmas.




3.

Dois anos já que espero me arrefeça o café
frente a lentíssimas cenas de caça
a rotina dos astros sobre umas poucas vidas
o laranjal incendiado e toda essa dança corrosiva
um fio de pesca nas mãos para que esquecido peixe?
e a frase com ela no meio indo à fonte
encher-se até cima
trabalhada como por um sonho

por ser doloroso o seu nome
vi-o espalhado, séculos antes lia-se em cântaros
neste vi-o marcado nas árvores
ali estava como um vestido a florir na corda
e o sol cheio de vagar a compor os ossos debaixo
tigres atravessando o selvagem estampado
a frágil fúria colorida num suave impasse
enquanto eu amestrava todos os tiques da solidão
e a escrita como uma forma de modéstia
o sentido estrito das aventuras
os mais ínfimos relatos e de costas
a antiguidade abanando a cabeça

a vida mal nos toca no meio dos bocejadores
desluzida mão-de-obra em transe
com as insistentes dívidas aos gatos
pássaros, cinzas assim
cansados uniformes adormecidos nos telhados
aquele mar moribundo atrás da casa
para quem gosta de afogar-se escutando os remadores
toda essa água ajuda-os lá com as coisas deles
uma última intimidade com o mundo
uma cobardia, uma fábula
algum outro assunto

mas ainda há um caroço poisado
sobre o muro, sobre o pior dos cansaços
há quem sopre a poeira dos colibris de biblioteca
quem exume corpos entre o veneno das gavetas
quem atravesse a manhã peneirando a neblina
e com passos iguais outros
tiram as medidas ao inferno

então perdoa-me, velho, se te deixo
se me falta o pudor e antes prefiro
o carnívoro talento mais sem vergonha
sorrindo sujo da mão ao cotovelo
entre as mais baixas das partes, quentes
eu a inspiro, esteja fresca ou podre
carne com um cheiro a tangerinas ao fundo
da língua faço um teatro romano
entrego o pescoço, deixo rolar a cabeça
por um enredo escabroso, do céu às fossas
que sangre e chame a si os elementos

e se das maiores inanidades esperei muito
dobrado hoje sinto-o nas costas
como se uma estrela pudesse esculpir ombros brutais
a pupila dilatada de assombro à sua luz
atiro a pedra arfante
e cruzo a vida breve das paisagens
o som de um coração trepando um susto
até à morte, o frescor silencioso que está lá
no início de todas as histórias




3.

Hace dos años que espero a que se enfríe mi café
frente a lentísimas escenas de caza
la rutina de los astros sobre unas pocas vidas
el naranjal incendiado y toda esa danza corrosiva
¿un hilo de pescar en las manos para qué pez olvidado?
y la frase con ella en medio yendo a la fuente
a llenarse toda
trabajada como por un sueño

por ser doloroso su nombre
lo vi esparcido, siglos antes se leía en cántaros
éste lo vi marcado en árboles
ahí estaba como un vestido floreciendo en la cuerda
y el sol lleno de vaguear compone los huesos debajo
tigres atravesando el salvaje estampado
la frágil furia colorida en un suave impasse
mientras yo amaestraba todos los tics de la soledad
y la escritura como forma de modestia
el sentido estricto de las aventuras
los más ínfimos relatos y de espaldas
la antigüedad moviendo la cabeza

la vida apenas nos toca entre los bostezadores
deslucida mano de obra en trance
con las insistentes deudas a los gatos
pájaros, cenizas así
cansados uniformes dormidos en los tejados
aquel mar moribundo atrás de la casa
para quien le gusta ahogarse oyendo a los remadores
toda esa agua les ayuda con sus cosas
una última intimidad con el mundo
una cobardía, una fábula
cualquier otro asunto

pero aún hay un hueso que reposa
sobre el muro, sobre el peor de los cansancios
hay quien sople el polvo de colibrís de biblioteca
quien exhume cuerpos entre el veneno de cajones
quien atraviese la mañana cerniendo la neblina
y con pasos iguales otros
toman las medidas del infierno

así que perdóname, viejo, si te dejo
si me falta el pudor y antes prefiero
el carnívoro talento más sinvergüenza
sonriendo sucio de la mano al codo
entre las más bajas partes, calientes
la respiro, sea fresca o podrida
carne con olor a mandarinas al fondo
de la lengua hago un teatro romano
ofrezco el cuello, dejo rodar la cabeza
por una trama escabrosa, del cielo a las fosas
que sangre y llame a los elementos

y si de las mayores futilidades esperé mucho
lo doble hoy siento a mis espaldas
como si una estrella pudiera esculpir hombros brutales
la pupila dilatada de asombro a su luz
lanzo la piedra jadeante
y cruzo la vida breve de paisajes
el ruido de un corazón trepando un susto
hasta la muerte, el frescor silencioso que está allá
al inicio de todas las historias






Diogo Vaz Pinto (Lisboa, 1985). Poeta y editor, junto con David Teles Pereira, de la editorial Língua Morta. Estudió Derecho en Lisboa y desde 2012 es periodista y crítico literario en el semanario Sol y en el Journal i. Ha publicado los libros Nervo (Averno, 2011), Bastardo (Averno, 2012), Anonimato (&etc, 2015), Havia um sino no meio da estrada (Fundação EDP/Centro Nacional de Cultura, 2016) y Ultimato (Maldoror, 2018).